A boa filha

8 fev

“Todos os anões podem ser bastardos, mas nem todos os bastardos precisam ser anões”.

(Tyrion Lannister, A Game of Thrones)

Indecisa, a garota segurou o cabo da espada com as duas mãos. Seu pai, um homem enorme e de uma farta barba ruiva, manejava o machado grande com uma naturalidade invejável, enquanto ela mal conseguia levantar a lâmina. Não era uma moça franzina, pelo contrário. Alta, tinha pernas fortes e bem torneadas, mas sempre foi um pouco desajeitada. Longos cabelos negros pendiam amarrados em uma trança, enquanto os olhos verdes iam do machado ao rosto do pai. Sabia que ele queria que ela fosse capaz de se proteger; a guerra se aproximava e, apesar de servir a um lorde, não poderiam prever quando seria necessário brandir uma espada.

– É assim que você vai lutar pela sua vida, mocinha? – a voz do pai retumbava, em um tom diferente do habitual. Estava sério como não costumava ser. Normalmente expansivo e bem humorado, Redskull parecia levar aquele treino como um dever a cumprir. Com um golpe rápido, prendeu a lâmina da espada no machado e, sem esforço, desarmou-a. A espada caiu com um baque seco no chão afofado pela chuva do dia anterior. – Você já estaria dividida em três pedaços agora. Vamos, pegue a espada. De novo.

Danna deu um olhar desconfiado para o machado do pai enquanto se abaixava, quase não notando os passos que se aproximavam. Se havia aprendido alguma coisa sobre lutas é que não podia se distrair; os hematomas do treino anterior ainda não a deixavam dormir bem. Claro que seu pai não a machucaria de verdade, mas ele adorava pregar peças, “como uma amostra do que pode acontecer em uma batalha real”.

– Redskull, é desse jeito que você pretende ensiná-la? – a voz era inconfundível. Victor Aerathis se aproximava calmamente, usando roupas de montaria. Mesmo vestindo roupas mais simples e resistentes, mantinha um porte nobre, altivo. Era o senhor daquelas terras, embora às vezes, só às vezes, Danna esquecesse isso. Não era raro encontrá-lo junto aos trabalhadores, bebendo uma cerveja barata e soltando galanteios para as mulheres. – Desse jeito vai fazer a menina perder uma mão, ou coisa pior!

– Oras, e quem você pensa que é para se meter nos assuntos da minha filha? – em tom brincalhão, trocaram apertos de mão e um breve abraço. Aquele tipo de lealdade, entre escudeiro e senhor, talvez ela nunca entendesse. Mas enchia-se de um orgulho besta ao ver a relação que o pai mantinha com aquele homem. Redskull, um grandalhão simplório, muitas vezes aconselhava Victor na administração das terras, dando-lhe uma opinião honesta sobre o que acontecia. E aquilo vinha funcionando muito bem, pelo que sabia.

– Vou deixá-los a sós, se me permitem. – despediu-se, fazendo uma mesura ao lorde. – Sei que têm assuntos a tratar. As lições podem ficar para amanhã, papai.

– Na verdade, pequena Danna, vim pedir os préstimos do seu pai. Algumas questões estão incomodando nas terras ao sul, e preciso que ele resolva isso pessoalmente. Eu mesmo iria, mas há uma comitiva para chegar daqui a alguns dias e sei que seu pai não gosta de lidar com a corte. – os dois trocaram um olhar breve, porém expressivo.– Você partirá pela manhã, sir. Passarei os detalhes mais tarde, no jantar.

– Pai, me leve com você! – pediu Danna. A ausência do pai significava a retomada dos maus tratos em casa. Sua madrasta, uma mulher reclamona, aproveitava as frequentes viagens do marido para usá-la como a criada que não tinha. – Eu não quero ficar aqui com aquela… mulher. E como eu vou aprender a lutar se você não fica uma semana em casa?

– Você está louca, menina? É perigoso! Imagina se acontece alg-

– Eu não quero ficar com aquela bruxa! – viu-se quase gritar. Não costumava desobedecê-lo, mas aquela mulher a enervava. Recebeu um olhar pesado do pai e respondeu em silêncio, os maxilares travados. Relaxou apenas quando ouviu Victor dizer:

– Eu não posso obrigar Redskull a levá-la, mas posso compensá-la, se me permitir. Sou um professor melhor que o seu pai, isso eu garanto. Não gostaria de ficar uns dias hospedada em minha casa?

**********

Anos depois, Danna entenderia porque Victor Aerathis, um dos heróis do reino de Allania, tinha tanta afeição por ela. E não era o mesmo interesse que ele demonstrava às outras mulheres a quem proferia tantos galanteios. Era algo diferente, embora ela não conseguisse precisar realmente. Durante aquela semana, tudo o que fez foi deleitar-se com a casa senhorial, o quarto tão mais limpo e arrumado que o seu, e com a companhia nos treinos de espada.

Quando a comitiva da corte chegou ao feudo, Danna descobriu porque Victor mandara Redskull para fora. Era um duelo, porém um duelo diplomático. “Negociações agressivas”, como o lorde definiu dias depois, enquanto conversavam bebendo vinho. Apesar de estar presente no jantar, vestindo roupas que não eram suas – e por isso um pouco curtas demais – não chegou a opinar sobre o assunto. A comitiva queria que Victor despendesse parte de seus homens para uma missão de reconhecimento. Ora, a Coroa não tinha pessoas especializadas nesse tipo de tarefa?

Outra pessoa à mesa roubava-lhe a atenção. Talvez como bandeira de paz, alguns nobres menores da corte vieram junto com a comitiva. Um rapaz dirigia-lhe olhares corteses, embora claramente interessados. Era uma moça bonita e sabia disso. Sabia também que aquele jovem não procurava nada além de alguém para aquecer-lhe a cama depois do jantar. Considerou aquilo um desafio. Se ele queria, que viesse buscar.

**********

Mais tarde aquela noite, Danna tentava passar sorrateira pelo corredor dos quartos designados aos hóspedes. Jon, esse era o nome do rapaz, ressonava profundamente àquela altura. Concentrada que estava tentando não fazer barulho, só percebeu que estava acompanhada quando sentiu a mão no seu ombro desnudo usando o conhecido sinete, um toque com o qual já estava familiarizada, seguida de uma discreta tosse forçada. Victor.

Tentou pensar em pelo menos três histórias diferentes, nenhuma delas muito convincente. Porcarias, porcarias, porcarias. Enrolada no lençol e segurando o vestido, ensaiou sua expressão mais natural o possível. Mentir seria de pouca valia. Devagar, virou-se para o lorde, e optou pelo caminho mais honesto.

– Eu… espero não ter desapontado-o, senhor.

– E por que desapontaria? Qual o problema de buscar uma noite prazerosa? – abriu um sorriso largo, os caninos proeminentes. – Não há nada de errado nisso. Fico feliz que alguém tenha conseguido algo essa noite. Se divertiu?

– Er… sim… mas… o senhor pode não contar nada pro meu pai? Não acho que ele ia ficar exatamente feliz comigo se… hã, souber do que…

– Estou certo de que seu pai não ia ficar chateado se souber o que aconteceu aqui. – falou Victor, em um tom carinhoso. – Mas não se preocupe, não contarei nada a Redskull. Comentar as aventuras de uma dama não é a postura de um cavalheiro.

**********

Quatro anos depois, foi com um senso de urgência que entrou novamente no solar senhorial. Sem se preocupar muito com cortesia ou boas maneiras, correu aos atropelos para o quarto. Alguns criados cercavam-no, deitado no leito, tentando de alguma forma parar o inevitável. Vitimado por um veneno inoportuno, destilado por uma criatura invejosa e pérfida, Victor Aerathis falecia sem um herdeiro legítimo.

– Meu senhor, Redskull disse que…

– Pro inferno com as formalidades, pequena. – a voz era fraca e rouca. A pele, antes com um bronzeado natural, agora empalidecia. Victor parecia bem mais velho deitado no leito, debilitado e fraco. Os cabelos negros esparramados nos travesseiros, as mãos, antes com apenas calos da empunhadura do sabre, agora ressecadas. E pensar que há poucas horas… – Sim, eu queria ver você. Gostaria de ter dito tudo isso antes, mas… espero que possa me perdoar um dia.

Com esforço, ele se colocou sentado. Chamou uma das criadas que lhe trouxe uma pequena caixa dourada, ricamente entalhada e abriu-a com alguma dificuldade. Dentro, um rubi brilhava, preso a uma corrente prateada. Apesar da fraqueza, Danna notou que ele olhava a joia com um sorriso nostálgico no rosto.

– Esse pendante… era da sua mãe. Ela pediu que eu entregasse pra você, filha.

Sem ação, a jovem o encarava, os grandes olhos verdes arregalados. Não sabia se chorava, se explodia de raiva, se terminava de matá-lo. Filha? Por isso o cuidado, o carinho, a atenção, os presentes, os treinamentos. Era uma bastarda. As mãos de dedos longos trêmulas seguraram a pequena caixa e, sem que percebesse, lágrimas caíram-lhe pelo rosto. Como pôde não notar isso antes? A semelhança era clara àquela altura: a pele levemente bronzeada, os cabelos negros e brilhantes, o mesmo sorriso largo de caninos pontiagudos…

Com reverência e ainda em silêncio, passou o pendante pelo pescoço. Ele sorriu e antes de tornar a deitar-se, com um gesto, pediu que a criada lhe trouxesse uma espada de lâmina longa, com um rubi semelhante incrustado. A arma brilhava à fraca luz, mas mostrava-se como recém-forjada. Uma espada bastarda.

– Mais uma das promessas que sua mãe me fez cumprir. Você deveria aprender o caminho da espada, e isso você fez muito bem. – um acesso de tosse violento o interrompeu. Não teria muito tempo, sabia disso. – Procure pela pedra sangrenta. Ela ficará orgulhosa de você, tanto quanto eu.

**********

Danna ouvira histórias de bastardos atormentados e infelizes. Não teve uma infância feliz, mas conforme dava passos resolutos em direção à casa de Redskull, cultivava um orgulho que não sabia bem explicar o porquê. Não era uma filha legítima, não sabia em era sua mãe, foi enganada por toda sua vida. Não deveria estar feliz, e não estava. Saber que era filha de um nobre e que teve sua paternidade renegada pelas politicagens e convenções sociais, porém, preencheu-a de uma esperança inexplicável. A infância dura e difícil teve seus motivos. Sua madrasta a detestava não porque era filha de um primeiro casamento, mas por ter sangue nobre. Redskull era leal a seu senhor, e nem uma filha poderia se intrometer nisso. Segurava a espada embainhada quando ouviu gritos vindos da casa. Tomada pelo mesmo senso de urgência de antes, correu para dentro do lugar.

– Você o matou, sua cadela miserável! – gritava Redskull, o rosto tão vermelho quando os cabelos e a barba farta. – Matou os senhores dessa terra! Matou lady Aleena! Você tem ideia do que fez, mulher?! Você tem ideia?!

– Sim, eu matei eles! – a mulher de meia idade berrava de volta. – Matei aquela putinha que brincava de ser nobre com quem você se deitava, matei aquele marido frouxo que não conseguia satisfazer a própria esposa! E o melhor, meu marido, é que tudo vai cair sobre os seus ombros! Você era o escudeiro dele! Você foi a última pessoa a vê-lo, enquanto enchiam a cara com vinho! Você cuidava das montarias dela! Você vai pagar pelo que fez com a minha vida, seu maldito!

Com uma tapa forte, a mulher caiu sonoramente no chão, derrubando uma cadeira. Redskull era um homem enorme, e não costumava pensar muito antes de fazer qualquer coisa, principalmente se tomado pela raiva. Danna tentou pensar nas implicações dos acontecimentos daquela noite, mas não teve muito tempo. Só sabia que o escudeiro leal de seu pai pagaria pelos crimes de uma desgraçada. E aquela criatura matou seu pai. Danna merecia sua vingança.

– Redskull! – gritou a plenos pulmões. Não conseguiria chamar a atenção de outra forma. O grito pareceu-lhe mais um rugido, como se externasse seus mais primitivos instintos. Os dois voltaram os olhares para ela, parada ali na porta, segurando a espada bastarda. – Vá embora daqui. Ela é minha.

O guerreiro logo se recompôs da surpresa, mas a mulher, não. Caída no chão, ela ali continuou, encarando a outrora enteada.

– Você me ouviu. Vá embora daqui, fuja dessas terras. Você vai ser visto como culpado, não importa o que se diga. Ela pagará pelo que fez.

********

Com a lembrança do sangue da madrasta na espada, Danna recebeu os mensageiros da Coroa em um jantar simples. Não demorou até que as notícias do assassinato de Victor corressem, e foi com os modos que aprendeu com o pai que recebeu os enviados para “negociações agressivas”.

– Então, senhorita, há de convir que está em uma situação delicada aqui.

– Apenas não entendo o porquê. Há testemunhas aqui que podem garantir o testemunho de meu pai a respeito do parentesco. Como ele não teve herdeiros-

– Sem querer macular a memória do lorde Victor Aerathis, sabia-se que ele era dado a galanteios. Então, como não garantir que outros na mesma situação que você apareça? A Coroa teria um problema familiar a resolver que apenas mancharia a reputação de um herói reconhecido pelo rei, e levaria anos, talvez décadas. Além disso, a palavra de um homem moribundo não será de valia para o julgamento da causa. – falou o mensageiro em tom definitivo. – Mas é claro que podemos pensar em alguma compensação, como um casamento com o futuro dignatário…

– Meu caro, acho que não nos entendemos aqui. – interrompeu a jovem, levantando-se, as mãos apoiadas na mesa de madeira. – Essas terras são minhas por direito, e se a Coroa não reconhece isso, eu não me importo de lutar pelo que é meu. Meus homens vão escoltá-lo às suas montarias.

Antes que pudesse pronunciar qualquer ordem aos seus guardas, o mensageiro viu-se cercado. Os guardas do feudo apontavam lanças e espadas para a escolta, enquanto dois deles colocaram-se de lado do arauto, flanqueando-o. Naquela noite, Danna aprendeu que com palavras, se começa uma guerra.

**********

Depois de quase um mês de cerco, ela sabia que perderia. Houve poucas baixas, mas a fome e a sensação de enclausuramento minavam as forças dos homens, e a sua própria. Mas ela sabia também que a Coroa não estava interessada em perder mais homens de armas em tempos de guerra: eles buscavam por ela, e somente ela. Um bode expiatório, alguém para culpar e responsabilizar. Em uma noite, mandou que os soldados se rendessem sem resistência. Deixara um cavalo preparado para a fuga e, após ter a certeza de que seus homens ficaram bem, fugiu. No pescoço, o pendante rubro. Na bainha, a espada que aprendeu a usar com o pai. No coração, a certeza de que um dia voltaria ali e retomaria o que era seu.

  • Prelúdio da minha personagem para o jogo do Daniel Ramos. Uma ideia que era para ser pequena e acabou ganhando mais páginas do que deveria. ;]

8 Respostas to “A boa filha”

  1. anamerege fevereiro 9, 2011 às 6:38 pm #

    Bem envolvente! Confesso que me escaparam os motivos pelos quais a madrasta de Danna matou Victor (e lady Allena? quem era ela? esposa de Victor E amante de Redskull???) mas mesmo assim o texto ficou muito legal!

    Como a história vai continuar? Quero saber detalhes. 😉

    • Allana fevereiro 10, 2011 às 10:40 am #

      Bem, eu imaginei que, do jeito que está, ficaria difícil saber as motivações da madrasta (que é tão madrasta Disney que nem nome tem, deu pra notar? xD). Maas esse prelúdio já rendeu frutos, e, em breve, tem mais historinhas. =D Obrigada pelo comentário!

    • Dan Ramos fevereiro 10, 2011 às 3:55 pm #

      Basicamente a velhota encontrou cartinhas de amor entre Redskull e Aleena (esposa de Victor e amante do cara) e achou que seu marido tinha o caso com consentimento de Victor (que desprezava a esposa infértil e pegava todas as outras mulheres da corte).

      E a madrasta odeia Danna por ser nobre, filha bastarda de Victor, e desde o começo ela ter sido obrigada a cuidar daquela fidalga que era diferente de toda a mediocridade dela e dos outros filhos. Ou seja: inveja madrastística Disney geral =P

      É que este é o prelúdio de uma personagem de RPG, e esses fatores são meio alheios a este conto. Talvez Allana desenvolva isso nos próximos contos =P

  2. italocurvelo fevereiro 10, 2011 às 8:59 pm #

    Fantástico! Difícil acreditar que toda essa história é “apenas um prólogo” de um PJ. Acredito que se esse texto recebesse um “zoom” já daria um romance completo por si só. Quem sabe o primeiro livro de uma trilogia? (não estou brincando)

    Espero que, em mesa, sua história possa desenvolver-se mais ainda. Seria uma pena constatar que esse bem fabricado casulo não originou uma vibrante borboleta… (hein?? maaaai frango!)

    ;******

    • Allana fevereiro 11, 2011 às 12:44 am #

      Temos que brainstormeaaaaaaaar, seu maldito! xD Tem um certo padre atormentado, e…

  3. Dan Ramos fevereiro 10, 2011 às 9:56 pm #

    A propósito amigos, o desdobramento desse conto, com outra perspectiva do mesmo cerco, está aqui: http://doiscontos.wordpress.com/?p=343

    Abs!

  4. Jagunço abril 22, 2011 às 10:20 pm #

    Isso dá muito pano pra manga. Espera… 😛

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  1. Pequenas sombras da guerra « Dois Contos - fevereiro 10, 2011

    […] mais). Se quiser saber mais sobre Danna, uma das personagens deste conto, leia o prelúdio dela clicando aqui. Boa […]

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