Arquivo | fevereiro, 2010

A luz que queima os olhos – Parte 1

14 fev

Acordou de repente, abrindo os olhos azuis para a noite escura. Algum barulho a fez despertar, embora não soubesse exatamente o quê. Deve ter sido seu pai – ele sempre insistia em deixar leite e biscoitos para que Papai Noel tivesse o que comer quando viesse deixar os presentes. Cateryn já era bem grandinha para saber que seu próprio pai era quem comia os biscoitos.

Talvez se o surpreendesse, ele desistiria dessa baboseira. Ela já tinha catorze anos, afinal. Sonolenta, esfregou os olhos e levantou-se. Olhou para o relógio na parede; passava das três da manhã. Descalça, a garota saiu do quarto.

Estava tudo escuro no andar de cima. Cateryn não se incomodava – era acostumada a fazer aquele caminho quando acordava à noite para ir ao banheiro. No fim do corredor, viu a porta do quarto dos pais aberta. Deviam estar no andar de baixo então.

Começou a descer as escadas devagar. De maneira indireta, as luzes da árvore de Natal iluminavam o caminho. Verde, amarela e vermelha; verde, amarela e vermelha.

Um barulho chamou-lhe a atenção: som de passos no andar de baixo, arrastando-se com um leve arranhar no assoalho. Não reconheceu os sons – teria mais alguém em casa? Apreensiva, a garota continuou a descer os degraus.

Faltando pouco para chegar ao hall, a luz vermelha da decoração natalina refletiu sobre os pedaços de vidro no chão. Um copo quebrado, o leite derramado, os biscoitos espalhados.

Sentiu o coração disparar dentro do peito. Algo muito errado estava acontecendo. Com cuidado, terminou de descer as escadas e desviou dos cacos de vidro.

Vindo da sala, ouviu um barulho abafado, como se algo pesado tivesse caído no tapete. Temerosa, Cateryn virou-se na direção da sala, e a iluminação parca permitiu-a ver apenas uma mão inerte no chão; no anelar, uma aliança dourada. Era seu pai.

Quando era mais nova, Cateryn sempre perguntava por que a aliança do seu pai era diferente da que sua mãe usava. Cada vez ouvia uma história diferente, até que sua mãe contou, por fim, que seu pai perdera a aliança personalizada no dia seguinte ao casamento, na piscina do hotel. E agora ele estava ali, caído, com o pijama ensangüentado e os olhos vidrados. Morto.

Teve vontade de gritar, mas a garganta estava travada. Sabia que não deveria continuar ali, mas o que fazer? Chamar a polícia? Sair correndo pela rua, pedindo ajuda? Tudo o que conseguiu fazer foi ficar ali parada, olhando em choque o corpo sem vida.

Sentiu lágrimas descerem pelo seu rosto, e ouviu um soluçar baixinho. Estava chorando? Uma voz familiar, então, se fez soar pela sala. Vinha de trás do sofá, perto da sala de jantar, onde, há apenas algumas horas, foi feita a ceia de natal com alguns parentes. As palavras não faziam sentido, apenas a voz fez a garota andar. Era sua mãe.

– Por favor… nos deixe em paz… leve apenas a criança e nos deixe em paz…

Cateryn andou, autômata, na direção dos sons. Sua mãe estava viva? Sentiu o pé descalço pisar no sangue empoçado do pai; ainda estava quente. Colocou a mão sobre o sofá felpudo e ouviu outro sussurro ininteligível. Não era a voz da sua mãe. Não era nenhuma voz que pudesse reconhecer. Não parecia sequer uma voz, na verdade, mas a cadência com que falava indicava isso. Ouviu, ainda, um grito baixo e sufocado da mãe. Só então conseguiu virar o corpo para ver o que estava acontecendo.

A pouca luz amarela provida pela árvore não a permitiu discernir muita coisa. Cateryn viu sua mãe com o pescoço numa posição estranha e impossível para quem estivesse vivo. Em cima dela, havia alguém curvado sobre o corpo da mulher. Parecendo surpreso, a pessoa olhou para a garota. A luz da árvore refletiu em olhos amarelos e fendidos, como olhos de gato.

E como um gato diante de um carro, Cateryn estava. As pernas pesaram, seus músculos se retesaram. Seu braço ainda estava apoiado no sofá; sentia o tecido felpudo entre os dedos, o sangue viscoso do pai entre os dedos dos pés.  O que quer que fosse, estava se aproximando. O que quer que fosse, estendia o braço para agarrá-la.

O barulho de um tiro a fez acordar mais uma vez aquela noite. O desconhecido recuou, não antes de segurar-lhe pelo braço com dedos afiados como garras. A garota gritou, de dor e de medo, e outro tiro ecoou, dessa vez bem mais próximo. Cateryn sentiu o braço livre e correu sem saber para onde. Atrás do sofá, viu um homem alto e negro usando uma pistola prateada. Com uma voz grave, o homem gritou:

– Fique aí!

E foi só o que ele teve tempo de dizer. O que ouviu depois foi o som da janela sendo quebrada e os passos se afastando.  Uma dor lancinante vinha do braço, e o que conseguiu fazer foi se encolher no sofá e chorar. Estava só.

Toda história tem um começo. Hoje, trago o início da história de Kate, conforme os posts anteriores do blog. E aproveitando a oportunidade, é minha contribuição para a Liga Narrativa, aglomeração de blogueiros contadores de histórias. O tema desse mês é Começos. Abaixo você pode conferir outros que também estão na brincadeira:

Começos – Armageddon

Verbos – Jagunço