Descansar, mesmo que fosse em uma cabana simplória numa noite fria, era muito reconfortante. Keriann sentia as pernas cansadas da viagem, e os ferimentos causados pelo combate inusitado da noite. Deitada no saco de dormir, olhava para sua mão direita, encarando a cicatriz profunda deixada pela adaga de Leona. A seus pés, Summer fechava os olhos, como se compartilhasse a inquietação da arqueira.
Mas não era a luta o que lhe atormentava aquela noite – no final das contas, encontrar Gawden, o ancião do vilarejo, foi até providencial. E os sortilégios curativos que ele performara foram o bastante para aplacar a dor física. O que inquietava sua cabeça, impedindo-a de dormir, eram as palavras ferinas do bardo: “uma cadelinha sem pensamentos próprios que o obedecia sem hesitar”.
Por mais que a ideia a incomodasse, aquela foi a única verdade que Adrian proferira durante toda a noite. Keriann sempre escutava o que Lyon dizia, sempre seguia seus conselhos, e não hesitava em retesar o arco quando ele pedia. Soldados bem treinados muitas vezes desobedeciam a seus capitães, em prol de si mesmos. Mesmo animais de caça fugiam dos seus donos às vezes. E quanto a ela? Mesmo quando discordava das opiniões do guerreiro, ela o seguiu.
E agora, Keriann se perguntava o porquê. Qual o motivo? Mesmo quando ele abandonou a todos – perseguindo loucamente os captores de Aillah, que por coincidência triste do destino eram liderados por Leona, irmã de Lyon – mesmo assim, ela o seguiu, sem hesitar. E não era por conta de Profecia alguma. Na verdade, a arqueira já esquecera-se daquilo há muito. Era outra coisa, incondicional, espontânea e que ela não conseguia explicar nem a si mesma.
– Pela Dama… eu não acredito que eu amo este homem.
O choque da descoberta a deixou pasma por algum tempo, não poderia medir. Repassava em mente os momentos, as conversas nas noites de guarda, os treinamentos, o desabafo no castelo de Clampot. Olhou para Lyon, deitado no saco de dormir. Estaria dormindo? Deveria contar a ele?
Claro que não, que ideia. Lyon era casado, estava prestes a ter um filho, e apesar dos pesares, parecia gostar da esposa. Não seria certo. E seria correto abrir mão de seus próprios sentimentos? Ser obrigada a casar foi o que a fez fugir de casa. No entanto, correr o risco de destruir uma família prestes a se formar não parecia a melhor coisa a se fazer. Guardar suas inquietações seria nobre, certamente. Mas era o que desejava?
Virou para o outro lado, encarando a parede. Podia estar confundindo os sentimentos. Não era a primeira vez que isso acontecia. Podia ter sido levada a acreditar naquilo, graças às bravatas ácidas do bardo. “Uma cadelinha sem pensamentos próprios”. Suspirou fundo. Sejá lá o que fosse, era melhor guardar para si.
Levantou-se, impaciente. Não conseguiria dormir agora, apesar do cansaço. Sorrateira, andou para onde estava Lyon, o meio-elfo de cabelos loiros que causava sua insônia. Definitivamente estava dormindo. A respiração ritmada, o peito subindo e descendo cadenciado…
A arqueira se aproximou, sentindo o coração acelerar dentro do peito. Os curtos cabelos cacheados caíram para frente, e então ela parou, com medo de que o roçar das madeixas acordasse o guerreiro. Ficou naquela posição não sabe por quanto tempo, indecisa sobre o que fazer. Pareceu uma eternidade até que resolveu se levantar. Voltou para o seu saco de dormir, resignada. Não, não era a coisa certa a se fazer. Chacoalhou a cabeça, como sempre fazia quando queria esquecer alguma coisa, e fechou os olhos. Amanhã seria um dia longo.