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Um inferno especial – Parte 1

21 jan

– Eu não tenho realmente escolha, não é?
– Isso não é uma democracia.

Ela revirou os olhos, entediada. Olhou para a mochila surrada, que a acompanhara em tantas viagens por aí. Ao invés de roupas e cobertores, dessa vez levava livros e cadernos. Tudo parecia um passado distante agora.

– E eu também arrumei um trabalho pra você. Pra depois da aula. Lembra da Shelly?
– Claro, ué. É a dona da lanchonete ali embaixo, que te olha como se você fosse a última garrada de água do deserto. Ela comentou mesmo que queria uma ajuda pra servir as mesas.

Não olhou Gregor de volta porque não quis encarar o olhar reprovador em resposta, embora pudesse senti-lo ainda assim. Ele não era de muitas palavras, mas com o tempo, Kate descobriu que não precisava muito delas. Os olhares e as sobrancelhas falavam muito mais.

– Você vai continuar caçando. – declarou, a mão prestes a abrir a porta do carro. Quatro anos de convivência eram o bastante para entendê-lo, em partes. – E tudo isso é pra eu ocupar meu tempo, não é?
– O que eu quero é uma vida normal para você. Faculdade, trabalho, casamento talvez, essas coisas. Ou você quer terminar como eu? – uma pausa, breve, de quem quer encerrar o assunto. – Repasse a história que combinamos.

Suspirou, desconsolada. Talvez se ela reprovasse miseravelmente nos testes da escola, ele desistisse. Olhou para o prédio – em letras garrafais, uma placa anunciava seu destino: Northwest High School. Outros jovens se dirigiam ao prédio, conversando animadamente. Se sentia em um filme de comédia colegial, em que atores de 25 anos fingiam ter 17. Esperou alguém sair de uma porta cantando uma música sobre como é bom estar de volta às aulas, e sorriu do próprio devaneio.

– Você vai ser meu tio, casado com a irmã da minha mãe. Meus pais morreram em um acidente de carro, e foi onde eu consegui a cicatriz. – falou, apontando a marca no antebraço, parcialmente encoberta com uma munhequeira.
– Certo. Eu vou viajar. Até o final da semana, estou de volta. Até lá, misture-se. Faça coisas que pessoas da sua idade fariam. Você sempre foi boa em fazer bobagens.
– Um inferno especial, Gregor. Um inferno especial para você.

Bateu a porta do carro e encarou mais uma vez o prédio. As janelas eram grandes e envidraçadas. Sentaria do lado de uma delas, pois se tudo desse errado, poderia tentar sair correndo feito uma louca. Viu os grupinhos se formando nos arredores da escola: os valentões do time de futebol; as líderes de torcida cochichando; os nerds e seus casacos de flanela; e os undergrounds, com piercings e cores de cabelo gritantes. Segurou a alça da mochila com força, apreensiva. Tinha certeza de que não pertencia a nenhuma das panelinhas. E aquilo a angustiava.

Deu os primeiros passos pelo caminho de blocos de concreto que davam para o corredor principal da escola. Era a novata, afinal de contas. O discurso sobre se misturar martelava-lhe a cabeça, mas Kate não fazia ideia de por onde começar. Respirou fundo e continuou a caminhada, mais resoluta. Oras, ela era a novata, afinal de contas. Não demorou para que os primeiros olhares viessem em sua direção – a maioria de rapazes. Sorriu levemente para alguns e continuou. Era um começo.

– Você que é Katherine, certo? Meu nome é Mark. E eu vou ser seu guia.

Não conseguiu esconder a surpresa no olhar, tanto pela aparição repentina quanto pela aparência do rapaz. Magro, usava uma calça justa e tantos piercings que a jovem se perguntava como cabiam tantos em uma orelha só. Um cabelo loiro pálido emoldurava o rosto muito branco do rapaz, que com um olhar mais atento, era possível perceber que usava maquiagem.

Maquiagem? Kate não usava maquiagem há tanto tempo que não conseguiu deixar de reparar. Onde esteve que a moda mudou tanto?

– Hm, praz-
– Essa é a escola, e aquele é o seu grupinho. – interrompeu, apontando para as garotas que pareciam saídas de As Patricinhas de Bervelly Hills. – E fim do tour.

Algumas escolas tinham programas de recuperação de notas através de “serviços prestados à comunidade escolar”; era um modo de “integrar o aluno à instituição”, ou qualquer baboseira desse tipo. Olhou mais uma vez para o grupo de garotas que conversavam sérias entre si – talvez uma delas estivesse até chorando – e teve a profunda certeza de que, se tivesse um grupo, não seria aquele.

– Eu agradeço a explicação contundente, Mark. E pode ter certeza de que vou falar muito bem de você para a supervisora escolar. – a ironia ela clara, e um leve sorriso decorava o rosto da jovem. – Mas que coincidência, não é a senhora Wellow que vem ali?

Uma mulher que passava dos cinquenta anos se aproximava, vindo da parte administrativa. Trazia um semblante carregado, mas que logo amenizou ao ver a jovem. Com um pouco mais de um metro e meio, a senhora andava a passos rápidos, os sapatos de salto ressoando no chão. Trazia o cabelo preto rigorosamente preso em um coque alinhado, e uma blusa de botões lisa completava o conjunto. Uma saia marrom, na altura do joelho, deixava entrever a meia calça que vestia para encobrir as marcas da idade.

– Vejo que já conheceu seu guia, srta. Carter. – ela sorria, aquele sorriso fabricado para os alunos novatos no início do ano. Parecia cansada e abalada. – Senhor Sullivan, já está ciente de suas atribuições para com esta jovem, não?

O rapaz olhou para Kate antes de se voltar para a supervisora, um olhar de puro ódio. A garota apenas sorriu em resposta, divertida. Não era seu tipo, mas causar um pouco de sofrimento a outra pessoa deixara-a sadicamente feliz. Escutou o rápido diálogo entre os dois, sorrindo sem mostrar os dentes, e foi com o mesmo sorriso que ouviu Mark dizer:

– Vadia.

**********

Uma grande foto, emoldurada por uma coroa de flores, fora instalada no corredor de entrada. Uma moça sorridente, com cabelos claros de cachos grandes recebia os estudantes que chegavam. Acima dela, com uma caligrafia caprichada, lia-se: “Memorial em nome de Susan Marshall”. Na mesa abaixo da moldura, também decorada com flores, vários cartões e mensagens. Aquele era o motivo para as estudantes chorosas, então. Sem pensar muito, pegou um dos cartões empilhados, que traziam escrito: Deixe aqui sua mensagem”.

– O que você quer comigo, afinal? – a voz de Mark a arrancou dos pensamentos. – Não sei se deu pra sacar, mas eu não sou da sua galera.
– Acredite, eu queria não estar aqui. Muito menos com você. Mas se você vai ganhar alguma vantagem às minhas custas, vai ter que trabalhar pra isso, gostando ou não. Pode começar me dizendo quem era a moça.
– Além de metida você é analfabeta? Não sabe ler?
– Você não quer que eu faça um mau relatório a seu respeito, mané.

O rapaz sorriu, embora Kate não conseguisse identificar o que ele estivesse querendo dizer. Teve vontade de enfiar um soco nas fuças daquele idiota, mas problemas desse tipo no primeiro dia de aula não lhe soavam nada “normais”. Segurou a alça da mochila e começou a andar, e então ouviu-o falar:

– Era uma das líderes de torcida. Morreu num acidente de carro, na saída da cidade. Satisfeita agora?

Kate não respondeu, mas olhou mais uma vez para a foto. Tudo fazia sentido agora. Primeiros dias de aula são conhecidos por trotes sem sentido, que normalmente terminam com alguém no hospital. Aparentemente, o único trote que sofreria era do destino, colocando Mark como seu “guia”. Guardou o cartão com cuidado no bolso externo da alça.

– Até quando eu tenho que aguentar você? – perguntou, andando em direção à sala.
Eu tenho que aguentar você até o final da semana.

Cinco dias. Greg fora da cidade, provavelmente fazendo alguma coisa muito mais divertida e perigosa, e ela fingindo ser uma estudante normal vinda do Texas. Pelo menos ainda tinha o sotaque.

**********

Sentia frio, muito frio. Durante muito tempo vagou na escuridão, passando por lugares tantos que perdeu a noção de si. As memórias eram confusas, assemelhando-se a um mosaico incompleto e truncado. Entre diferentes cores e tamanhos, tentava montar algo que fizesse sentido.

E então uma dor imensa, perfurando-lhe o braço esquerdo. Uma, duas, três vezes. Contínua, cortante, inmensurável. Mais intensa do que… há quanto tempo tinha acontecido?

Gritou alto e profundamente, como nunca achou que conseguisse. Ele a trouxera até ali: um lugar escuro, apertado e claustrofóbico. Seu braço doía, mas não estava ferido. Como era possível?

E então, olhando para si, no chão, compreendeu. O mosaico ganhou forma em sua mente e a raiva possuiu sua forma tão real e tão efêmera.

Aquele homem a ajudaria, mas queria favores em troca.

Não importava. Teria sua vingança.

  • Início do projeto Hunter High School. =D
  • Desenho da talentosíssima Camilla Guedes. Dêem uma olhada na galeria da moça AQUI!

Sobre fantasmas e heróis

7 maio

All my heroes have now become ghosts
Sold their sorrow to the ones who paid the most
All my heroes are dead and gone
But they’re inside of me, they still live on

(Heroes – Shinedown)

Tudo começou com uma moça bonita batendo à sua porta. Falando alguma coisa sobre ser jornalista. Estaria mentindo se dissesse que escutou o que ela disse no começo. Algo sobre estar fazendo uma matéria a respeito dos acidentes na estrada.

E então ela usou a palavra: assombração. Fantasmas, e coisas assim. Então ele escutou. E contou o que sabia. Sobre o acidente que quase o matou, e que o fez ter medo de sair de casa desde então. Há quatro anos. E que ela, Rebecca, o fantasma, queria se vingar dele. Por motivos extra-conjugais.

Agora, sendo interrogado pela polícia, Richard nem mencionara a moça que lhe salvara a vida. Para eles, tudo não passaria de um satanista que profanou o túmulo da sua ex-namorada. No fim, restaram duas pessoas mortas: um rapaz, que Rebecca, manipulada, matara, e que seria arquivado sem solução; e um faxineiro que ele nunca vira na vida, mas que, de algum modo, controlava Rebecca.

Ser filho de um juiz, nessas horas, ajuda. Sabia que tudo daria certo. E nem precisou falar de nenhum fantasma. Quando foi liberado, pegou o celular e mandou uma mensagem.

**********

Kate conseguia entender um fantasma vingativo. O que não quer dizer que gostasse deles, mas conseguia entendê-los. Eles tinham um motivo para voltar do além e buscar vingança, ou proteger alguém, ou qualquer coisa assim. Não precisavam ser bons motivos, mas eles tinham.

Mas as pessoas, bem, essas ela estava longe de entender.

Diante do espelho enferrujado do banheiro, ela olhava o hematoma no rosto. Uma mancha roxa se espalhava próxima à orelha. Inventaria uma desculpa qualquer.

No braço, um ferimento mais profundo, feito à faca. A mesma faça usada para abrir cortes do corpo de Rebecca, o fantasma vingativo que, meio sem querer, Kate destruíra. Depois de meio vidro de álcool derramado e muitas caretas de dor, ela esperava que estivesse limpo.

Fantasmas existiam; ela testemunhou. E o rapaz, que tentou tão desesperadamente salvar, seria enterrado amanhã.
Com cuidado, enfaixou o braço. Precisava ficar discreto o bastante para que ninguém notasse sob a roupa. Tinha certeza que se fosse a um hospital levaria alguns pontos, mas esse era um luxo que não podia ter.

– Você fez o que podia. – ouviu Gregor dizer atrás de si. Quase pulou de susto, o que só a fez apertar mais o curativo.
– Não fiz nada. Quatro pessoas morreram graças a isso tudo. – “Inclusive a única que eu achava que valia a pena salvar”, pensou em dizer.
– Pelo menos você não está fazendo companhia a eles.

O toque do telefone a impediu de dar uma resposta adequada, provavelmente envolvendo alguns palavrões.  Era uma mensagem. E, pela primeira vez na noite, sorriu.

Obrigado por me salvar. Richard.

Bem, não é o conto no qual eu estava trabalhando, mas tem a ver com o Hunter High School, certo? Estou desculpada? ;D

Mais um tema da Liga Narrativa – e o de Maio (que espantosamente eu estou postando antes do meio do mês!) é Herói.  E eu ainda estou no aguardo dos textos do pessoal. =]

Fulfilled

8 abr

Abriu os olhos para a escuridão como tantas outras vezes. A cabeça rodopiava pelas paredes do quarto – estava no quarto? Não sabia dizer ainda. Seu corpo doía e tremia como nunca antes. Já havia se machucado antes em serviço, não era novidade. Mas diferente das outras vezes, trazia um sorriso no rosto.

Lembranças da noite passada afloravam na mente confusa. Houve uma luta, embora ela não lembrasse bem o que aconteceu. Só devia ter apanhado bastante.

Sorriu, e o sorriso logo se transformou em gargalhada. E quando a caça se torna caçador?

Não importava. Ele conseguiu deixá-la assim. Estava feliz. Preenchida. Alimentada. Completa.

O gosto férreo do sangue tornava a aparecer na boca. Relembrando o momento, ela ainda se deliciava. Não poderia descrever se quisesse. E por que deveria se preocupar com palavras? Ninguém entenderia. Ninguém precisava entender.

O sangue vertia suavemente do pequeno corte nos lábios. Ela não entendeu a princípio; não deveria ser a presa? Mas não questionou. E ao provar, soube que não poderia desejar algo diferente. Depois de tanto tempo, finalmente preencheu o vazio que tanto a atormentara. Cada gota de sangue fazia-a tremer dos pés à cabeça. Prazer. Excitação. Adrenalina. Rápido. Forte. Intenso. E profundamente errado.

Naquele momento, soube que não havia nada igual. Soube que estava perdida.

E mesmo na lembrança, deleitava-se. Apesar da dor e dos ferimentos, era imbatível. Ninguém ou nada poderia detê-la.

A cabeça girou mais uma vez. Não se levantaria tão cedo.

Um lapso de sanidade: estava indo longe demais. Tinha que parar com aquilo. Seria capaz?

Mais um da Liga Narrativa, dessa vez seguindo o conselho de um amigo. O tema de março (que eu estou descaradamente postando em abril) foi Banquetes. Abaixo, os outros que resolveram se refestelar. E o desenho é claramente inspirado na Lust, de Full Metal Alchemist.

Aniversário de Namoro – Roleplayer

O Segundo Gosto – O Feudo

Fome – Juca’s Blog

A luz que queima os olhos – Parte final

26 mar

Parte 1 aqui.

As luzes da árvore de Natal passaram para as luzes vermelhas e azuis das sirenes da polícia. Catteryn se viu observada por uma multidão de curiosos conforme era levada para uma das viaturas. Na multidão, reconheceu o homem que salvara sua vida.

– Acha que pode falar sobre o que aconteceu? Não está cansada, mocinha?

A voz era de uma mulher; a sala era de interrogatório. Detetive Bennet, ela podia ver no crachá que trazia uma foto antiga da mulher com quem falava. O braço estava fortemente enfaixado, mas três rastros de sangue se viam pela gaze.

Catteryn queria falar; talvez assim, parte da dor fosse embora. Talvez falar a ajudasse a entender o que aconteceu.

Acordara no meio da noite. Desceu as escadas, pensando que surpreenderia o pai comendo os biscoitos da árvore de Natal, e encontrou o copo quebrado. Na sala, viu primeiro a mão da aliança; Depois, o seu pai, caído, inerte. E então a voz da mãe, parecendo implorar a alguém.

– E o que ela disse?

Não lembrava. As palavras não tiveram nenhum sentido, Lembrava-se apenas das vozes, e da pessoa que atacara a sua mãe. Não viu nada, apenas uma forma que tentou agarrá-la. E então alguém chegou atirando.

– Você viu o homem? Os policiais disseram que você falou de um negro. Poderia descrevê-lo?

Veio-lhe à mente a imagem do homem que a observava na multidão. Era alto, usava uma jaqueta pesada, coturnos militares e uma calça jeans surrada. Tinha o rosto marcado e um cabelo curto, estilo militar. Ele lhe salvara a vida. Mas não adiantaria dizer isso à detetive Bennet. Eles queriam um culpado; e o primeiro a ser procurado seria o negro que entrou na sua casa atirando.

– Não, estava escuro. Ele só gritou que eu ficasse lá e saiu correndo atrás do… do outro.

– Tudo bem, não se preocupe. Se você lembrar de alguma coisa, qualquer coisa, pode nos procurar. – a mulher forçou um sorriso, talvez por pena. – E esse seu braço, não está ponteado por quê?

– O médico falou algo sobre uma infecção. Disse que ia demorar a sarar.

Ela não fazia idéia do quanto.

**********

Estava correndo. O peito arfava, suas pernas parecendo não conhecer limites para o esforço. Sentia nos pés o sangue ainda quente do pai.

Olhou para trás, mas já não havia luz. A árvore de Natal estava derrubada, e a escuridão era quase palpável. Apenas ouvia a respiração e os passos arranhando o assoalho. Estava perto, muito perto, cada vez mais perto.

Continuou correndo, mas ele a alcançou. Segurou-a pelo braço e uma dor lancinante percorreu-lhe o corpo. Não conseguia mais se mover, não havia mais porque. Olhos amarelados, fendidos como os de um gato, a encaravam, deliciados com o medo da menina. Catteryn gritou, sabendo que ninguém a escutaria. E acordou.

– Outro pesadelo, menina?

Os faróis do carro iluminavam a estrada. A escuridão se estendia, e as luzes da cidade já não podiam ser vistas pelo retrovisor. Pela manhã, já estariam fora do Texas. Kate olhou para motorista pelo retrovisor: sisudo e sério, o homem negro de cabelo curto não devolvia o olhar.

– É, outro pesadelo. – respondeu. – Gregor, como você sabia… daquela coisa que nos atacou?

– Ocorrências parecidas anteriormente. Agora volte a deitar no banco. A última coisa que eu preciso é ser acusado de sequestro.

Kate afundou no banco revestido de couro. Era um carro velho, mas os bancos eram confortáveis. Os pesadelos não parariam, e tinha certeza, embora não soubesse o porquê, que a coisa voltaria um dia. Não estava segura com seus tios, não estaria segura sozinha. Gregor, ao menos, parecia saber um pouco mais. Mas não era do tipo que falava muito.

Não importava. Ela teria muito tempo para pedir explicações.

A luz que queima os olhos – Parte 1

14 fev

Acordou de repente, abrindo os olhos azuis para a noite escura. Algum barulho a fez despertar, embora não soubesse exatamente o quê. Deve ter sido seu pai – ele sempre insistia em deixar leite e biscoitos para que Papai Noel tivesse o que comer quando viesse deixar os presentes. Cateryn já era bem grandinha para saber que seu próprio pai era quem comia os biscoitos.

Talvez se o surpreendesse, ele desistiria dessa baboseira. Ela já tinha catorze anos, afinal. Sonolenta, esfregou os olhos e levantou-se. Olhou para o relógio na parede; passava das três da manhã. Descalça, a garota saiu do quarto.

Estava tudo escuro no andar de cima. Cateryn não se incomodava – era acostumada a fazer aquele caminho quando acordava à noite para ir ao banheiro. No fim do corredor, viu a porta do quarto dos pais aberta. Deviam estar no andar de baixo então.

Começou a descer as escadas devagar. De maneira indireta, as luzes da árvore de Natal iluminavam o caminho. Verde, amarela e vermelha; verde, amarela e vermelha.

Um barulho chamou-lhe a atenção: som de passos no andar de baixo, arrastando-se com um leve arranhar no assoalho. Não reconheceu os sons – teria mais alguém em casa? Apreensiva, a garota continuou a descer os degraus.

Faltando pouco para chegar ao hall, a luz vermelha da decoração natalina refletiu sobre os pedaços de vidro no chão. Um copo quebrado, o leite derramado, os biscoitos espalhados.

Sentiu o coração disparar dentro do peito. Algo muito errado estava acontecendo. Com cuidado, terminou de descer as escadas e desviou dos cacos de vidro.

Vindo da sala, ouviu um barulho abafado, como se algo pesado tivesse caído no tapete. Temerosa, Cateryn virou-se na direção da sala, e a iluminação parca permitiu-a ver apenas uma mão inerte no chão; no anelar, uma aliança dourada. Era seu pai.

Quando era mais nova, Cateryn sempre perguntava por que a aliança do seu pai era diferente da que sua mãe usava. Cada vez ouvia uma história diferente, até que sua mãe contou, por fim, que seu pai perdera a aliança personalizada no dia seguinte ao casamento, na piscina do hotel. E agora ele estava ali, caído, com o pijama ensangüentado e os olhos vidrados. Morto.

Teve vontade de gritar, mas a garganta estava travada. Sabia que não deveria continuar ali, mas o que fazer? Chamar a polícia? Sair correndo pela rua, pedindo ajuda? Tudo o que conseguiu fazer foi ficar ali parada, olhando em choque o corpo sem vida.

Sentiu lágrimas descerem pelo seu rosto, e ouviu um soluçar baixinho. Estava chorando? Uma voz familiar, então, se fez soar pela sala. Vinha de trás do sofá, perto da sala de jantar, onde, há apenas algumas horas, foi feita a ceia de natal com alguns parentes. As palavras não faziam sentido, apenas a voz fez a garota andar. Era sua mãe.

– Por favor… nos deixe em paz… leve apenas a criança e nos deixe em paz…

Cateryn andou, autômata, na direção dos sons. Sua mãe estava viva? Sentiu o pé descalço pisar no sangue empoçado do pai; ainda estava quente. Colocou a mão sobre o sofá felpudo e ouviu outro sussurro ininteligível. Não era a voz da sua mãe. Não era nenhuma voz que pudesse reconhecer. Não parecia sequer uma voz, na verdade, mas a cadência com que falava indicava isso. Ouviu, ainda, um grito baixo e sufocado da mãe. Só então conseguiu virar o corpo para ver o que estava acontecendo.

A pouca luz amarela provida pela árvore não a permitiu discernir muita coisa. Cateryn viu sua mãe com o pescoço numa posição estranha e impossível para quem estivesse vivo. Em cima dela, havia alguém curvado sobre o corpo da mulher. Parecendo surpreso, a pessoa olhou para a garota. A luz da árvore refletiu em olhos amarelos e fendidos, como olhos de gato.

E como um gato diante de um carro, Cateryn estava. As pernas pesaram, seus músculos se retesaram. Seu braço ainda estava apoiado no sofá; sentia o tecido felpudo entre os dedos, o sangue viscoso do pai entre os dedos dos pés.  O que quer que fosse, estava se aproximando. O que quer que fosse, estendia o braço para agarrá-la.

O barulho de um tiro a fez acordar mais uma vez aquela noite. O desconhecido recuou, não antes de segurar-lhe pelo braço com dedos afiados como garras. A garota gritou, de dor e de medo, e outro tiro ecoou, dessa vez bem mais próximo. Cateryn sentiu o braço livre e correu sem saber para onde. Atrás do sofá, viu um homem alto e negro usando uma pistola prateada. Com uma voz grave, o homem gritou:

– Fique aí!

E foi só o que ele teve tempo de dizer. O que ouviu depois foi o som da janela sendo quebrada e os passos se afastando.  Uma dor lancinante vinha do braço, e o que conseguiu fazer foi se encolher no sofá e chorar. Estava só.

Toda história tem um começo. Hoje, trago o início da história de Kate, conforme os posts anteriores do blog. E aproveitando a oportunidade, é minha contribuição para a Liga Narrativa, aglomeração de blogueiros contadores de histórias. O tema desse mês é Começos. Abaixo você pode conferir outros que também estão na brincadeira:

Começos – Armageddon

Verbos – Jagunço

Hunter High School

2 jan

O projeto Hunter High School surgiu, como a maioria das coisas que eu postei aqui, baseado em um jogo de RPG. Kate é a minha personagem de um jogo-teste do Hunter: The Vigil, da White Wolf.

A premissa do Hunter não é novidade: uma pessoa normal descobre que há coisas na escuridão: vampiros, fantasmas, lobisomens, demônios e o que mais sua imaginação conseguir produzir. Séries como Sobrenatural, Arquivo X e mesmo Buffy já trazem essa abordagem. Mas o tema é atraente e o livro é, em particular, muito inspirador.

Já o Hunter High School, que nada mais é do que uma compilação de pequenos contos, desenhos e o que mais me der na telha, parte de uma premissa semelhante: uma adolescente de vidinha normal descobre, de uma maneira traumática, que monstros caminham por aí. E daí aparecem as dificuldades de tentar conciliar uma vida normal com caçadas noturnas.

Entre as coisas que eu pretendo fazer, estão perfis de personagem (como esse da Kate), mapas dos lugares mais importantes, e coisas assim. Além, claro, de textos e desenhos. Se isso não der em lugar nenhum, pelo menos é uma boa forma de passar o tempo. E de ressuscitar o blog.

O projeto tem um caráter extremamente pessoal: é algo para me dedicar no tempo livre (ou simplesmente para não pensar em coisas como estudo e trabalho), além de um exercício criativo. RPG é um jogo de contar histórias, afinal. E por que não compartilhá-las?

Um feliz 2010 para todos os 1d4-3 (no mínimo de 1) leitores do blog. Que seja cheio de realizações, conquistas e tudo o mais.

Perfil de Personagem – Kate

23 nov

Projeto “Hunter High School” – Mais novidades depois. 🙂

Nome: Cateryn Beckett, usando o nome de Katherine Carter atualmente

Apelido: Kate é como prefere ser chamada

Idade: 18 anos no início da história

Data de Nascimento: 22/11/1990

Tipo Sangüíneo: O-

Signo: Sagitário

Gosta: nos últimos anos, adquiriu certo gosto pela leitura, principalmente de terror. Seus escritores preferidos são Stephen King, Edgar A. Poe (embora ela sofra um pouco para ler alguns dos poemas) e Anne Rice. Lê quadrinhos com certa freqüência, embora de maneira bem mais espaçada (o dinheiro ralo não permite; a maioria dos livros que leu foram emprestados de bibliotecas públicas). Treina kung-fu com seu mentor, Gregory, e embora seja iniciante, é dedicada. Gosta de conhecer pessoas e conversar com elas, desde que o assunto não seja ela mesma. Gosta também de ajudar os outros, seja apenas ouvindo seus problemas, ou fazendo algo mais – ocupar-se com os problemas de outros a faz esquecer-se dos seus.

Desgosta: recentemente, vem detestando a escola e tudo o que ela representa. Ser obrigada a freqüentar o colegial depois de anos afastada do ambiente escolar a faz lembrar de uma vida antes do incidente, uma vida que já não consegue mais ter. Não gosta de falar sobre si mesma – as pessoas sempre perguntam demais, e falar de si a faz relembrar que seus problemas existem. Fica extremamente incomodada quando vê alguém triste ou passando por dificuldades de algum modo; a noção de que coisas espreitam na escuridão a torna protetora em relação aos que, por algum motivo, não sabem do sobrenatural. De certo modo, ela os inveja – a perda de seus pais deixou marcas que vão além daquelas do seu braço.

Aparência: qualquer um diria que Kate parece uma atriz de filmes adolescentes, e não estaria mentindo. O corpo esculpido pelos constantes treinamentos de kung-fu, aliado a um rosto bonito e um sorriso que aprendeu a usar para convencer as pessoas contribuem para isso. Tem 1,70 m (sempre praticou esportes, mesmo durante o ginásio, quando era líder de torcida), 62 kg, cabelos castanhos e na altura das espáduas. Seus olhos são castanhos claros, e possui uma longa e profunda cicatriz no antebraço esquerdo.

Como se veste: no dia-a-dia prefere calças jeans, por serem resistentes e confortáveis, além de destacarem seu corpo quando é conveniente. Usa casacos e jaquetas quando está mais frio, por cima de camisetas e blusas de malha ou algodão.  Para sair em boates, prefere vestidos com um caimento mais leve, que não a impeçam de dançar. Não gosta muito de sapatos de salto, mas não vê problema em usá-los quando a ocasião pede – embora isso não tenha acontecido em alguns bons anos. Para uso diário, prefere tênis; para caçadas, tênis ou coturnos – o que estiver mais fácil de encontrar na hora de sair.  Quando está em casa, prefere usar roupas largas e folgadas. Kate sempre usa algum tipo de faixa no braço esquerdo para cobrir as cicatrizes que carrega.

Cores preferidas: vermelho, preto e azul escuro.

Prato Preferido: churrasco.

Personalidade: Kate é bastante sociável, e rapidamente costuma se enturmar em qualquer ambiente. Gosta de ajudar quem está ao seu alcance, por assim estar se preocupando com alguém. Entretanto, fica facilmente irritada quando vê ou passa por alguma situação que a incomode, e quando guarda rancores por muito tempo, costuma estourar sua raiva sem medir muito bem com quem ou a situação.

Histórico: Cateryn tinha 14 anos quando despertou para o fato de que havia monstros na escuridão. Era o natal de 2004. Morava numa cidade pequena do Texas com seus pais, e depois que todos os parentes foram embora, ela falava com o namorado no telefone. Ouviu um barulho pela casa e achando que era seus pais, foi colocar o telefone no lugar. Entretanto, viu que alguém entrou pela porta dos fundos e assustada, gritou. Seu gritou acordou seus pais que saíram do quarto e antes que pudesse fazer qualquer coisa, a criatura os atacou, matando-os. Encurralada, a garota foi salva por Gregory, que estava investigando os assassinatos que vinham sendo cometidos pela criatura. O estranho ser fugiu, deixando o antebraço esquerdo da jovem com as marcas de suas garras longas e pustulentas. Depois disso, Cateryn foi morar com os tios, mas além de não se sentir em casa, não se sentia segura. Tinha sonhos terríveis e incapaz de encarar a vida com a mesma postura de antes, procurou Gregory. Depois de convencê-lo a duras penas, fugiu de casa na noite anterior ao ano novo, e passou a viajar com ele. Indiretamente lidou com os mais diversos monstros sobrenaturais: Gregory nunca a deixou envolver-se diretamente em nenhum caso, mas ensinava “o suficiente para mantê-la segura”. Passou os quatro anos seguintes viajando por aí, lendo livros emprestados na biblioteca e estudando os assuntos equivalentes às séries que deveria estar freqüentando na escola. Em 2009, Gregory decidiu assentar-se numa cidade pequena, para que Cateryn pudesse terminar o colegial e se preparar para entrar numa faculdade. Ela não aceitou de bom grado, mas não vai jogar pela janela o esforço que seu “mentor” vem fazendo.

Quando a Luz vacila na Escuridão

28 set

Kate Empty SketchO despertador tocava. Pela terceira vez. Precisava acordar. Ir à escola. Prometera a Greg. E as aparências. Precisavam ser mantidas.

Não tinha vontade. Olhar para aquelas caras insossas, aquelas pessoas que não sabiam de nada. A sala inteira, o time inteiro. Ah, o time. Terça-feira? Tinha treino hoje, droga. Cheerleading. Não agüentava mais a Jennyfer. Nem aquelas outras que a seguiam como uma ninhada de patos. Quack quack. Katherine deixara aqueles dias para trás há muito.

Por uns dias, achou que poderia voltar àquela vida. Ou quase. Sabia que coisas espreitavam às escuras. Conhecia a verdade, ou parte dela. Mas quando chegou naquela cidadezinha, quando voltou à escola, quando se inscreveu para os testes, chegou quase a acreditar que aquela poderia ser a sua vida. Estudar. Faculdade. E tomar cuidado quando saísse por aí.

E veio aquele… espírito. Aquela fantasma atormentada. O fantasma de uma líder de torcida, pode? Kate estranhou, Greg não estava na cidade. Foi o seu primeiro trabalho. E aquela criatura, aquela coisa arruinou a vida de tanta gente… quantos não morreram? Quantos ela não deixou morrer para fazer alguma coisa?

Ela chorou, por uma semana ou mais. Revia Eric morrer, e ela inerte, impotente, entorpecida. Mas ela salvou pessoas. A própria Jennyfer, que nunca vai saber disso. O jogador de futebol; como era o nome dele mesmo? Ele estava bem agora. Ela ajudou alguém, no final das contas. Doeu, mas conseguiu superar. Greg estava lá. Imaginava o que ele não teria visto, quantos não teriam morrido diante dele.

Kate poderia ter morrido se ele não tivesse chegado à tempo, anos antes. Quantos anos? Parecia algo tão distante agora…

Ele a ajudou. Ele a levou para investigar os casos de pessoas que estavam brigando e se matando por motivos banais. Ela descobriu a boate. E lá conheceu aquele demônio.

Linda. Linda, sensual e provocante. A DJ da boate parecia ter sido desenhada por um Milo Manara. Kate nunca pensara na possibilidade, mas vê-la ali, tão dedicada, apaixonada e estonteante não a fez pensar duas vezes. E ela percebera seu olhar.

No dia seguinte, entraram no lugar. Kate e Greg, disfarçados, fizeram uma sondagem. E à noite, Kate voltara. E se deixou levar para o quarto. Era uma súcubo – e o exorcismo tinha que ser perfeito. Nada podia dar errado.

Mas deu. Ela era poderosa, e resistiu. Resistiu do jeito que poderia fazer: fazendo-a sentir um prazer forte, intenso, agudo, dolorosamente bom, e indescritível. Com um olhar. Apenas com as intenções que sua essência infernal trouxe à terra.

Naquela noite, Kate matou alguém. Era a sacerdotisa, quem trouxera aquela criatura das profundezas. Não a consolava pensar que era necessário. Ela matou alguém. Apontou a arma, puxou o gatilho e viu a mulher cair no chão. Mas não foi o que mais lamentou aquela noite.

Fez o exorcismo. Deixou-a ir embora. Fez com que ela fosse embora, de volta para o inferno, talvez. Mas desejou aquela sensação, aquele prazer pecaminoso uma vez mais. Mais. Queria mais, e de novo, e mais, e cada vez mais. Aquela intensidade, as ondas reverberando pelo seu corpo jovem e rijo e tenso. Desde aquela noite, era a única coisa que desejava.

E buscou, e buscava, e busca. Continua procurando. Apenas uma casca vazia, era como se sentia. E de que adiantava viver assim? Nada era interessante. Nada dava vontade. Bebeu, transou com tantos naquelas semanas que não podia nem contar. Contar. Contar a quem? Quem a entenderia? Não podia. E ainda buscava.

O despertador tocou. Pela quarta vez. Ou quinta? Não conseguia contar. Não podia contar. A ninguém. Olhou pela janela: o sol iluminava e esquentava seu quarto. Não tinha vontade de ir. Mas precisava. Encher a cabeça. A cabeça com conversas inúteis, planos inúteis, assuntos inúteis, pessoas inúteis. Nenhuma delas a preenchia. Nenhuma delas lhe servia.

Odiaria cada minuto daquele dia. Odiaria a si, àquele vazio, a si. Relutante, desligou o despertador e se levantou.

Texto que escrevi para uma personagem de Hunter: The Vigil. E para comemorar os dois anos de um blog quase abandonado.

O despertador tocava. Pela terceira vez. Precisava acordar. Ir à escola. Prometera a Greg. E as aparências. Precisavam ser mantidas.

Não tinha vontade. Olhar para aquelas caras insossas, aquelas pessoas que não sabiam de nada. A sala inteira, o time inteiro. Ah, o time. Terça-feira? Tinha treino hoje, droga. Cheerleading. Não agüentava mais a Jennyfer. Nem aquelas outras que a seguiam como uma ninhada de patos. Quack quack. Katherine deixara aqueles dias para trás há muito.

Por uns dias, achou que poderia voltar àquela vida. Ou quase. Sabia que coisas espreitavam às escuras. Conhecia a verdade, ou parte dela. Mas quando chegou naquela cidadezinha, quando voltou à escola, quando se inscreveu para os testes, chegou quase a acreditar que aquela poderia ser a sua vida. Estudar. Faculdade. E tomar cuidado quando saísse por aí.

E veio aquele… espírito. Aquela fantasma atormentada. O fantasma de uma líder de torcida, pode? Kate estranhou, Greg não estava na cidade. Foi o seu primeiro trabalho. E aquela criatura, aquela coisa arruinou a vida de tanta gente… quantos não morreram? Quantos ela não deixou morrer para fazer alguma coisa?

Ela chorou, por uma semana ou mais. Revia Eric morrer, e ela inerte, impotente, entorpecida. Mas ela salvou pessoas. A própria Jennyfer, que nunca vai saber disso. O jogador de futebol; como era o nome dele mesmo? Ele estava bem agora. Ela ajudou alguém, no final das contas. Doeu, mas conseguiu superar. Greg estava lá. Imaginava o que ele não teria visto, quantos não teriam morrido diante dele.

Kate poderia ter morrido se ele não tivesse chegado à tempo, anos antes. Quantos anos? Parecia algo tão distante agora…

Ele a ajudou. Ele a levou para investigar os casos de pessoas que estavam brigando e se matando por motivos banais. Ela descobriu a boate. E lá conheceu aquele demônio.

Linda. Linda, sensual e provocante. A DJ da boate parecia ter sido desenhada por um Milo Manara. Kate nunca pensara na possibilidade, mas vê-la ali, tão dedicada, apaixonada e estonteante não a fez pensar duas vezes. E ela percebera seu olhar.

No dia seguinte, entraram no lugar. Kate e Greg, disfarçados, fizeram uma sondagem. E à noite, Kate voltara. E se deixou levar para o quarto. Era uma súcubo – e o exorcismo tinha que ser perfeito. Nada podia dar errado.

Mas deu. Ela era poderosa, e resistiu. Resistiu do jeito que poderia fazer: fazendo-a sentir um prazer forte, intenso, agudo, dolorosamente bom, e indescritível. Com um olhar. Apenas com as intenções que sua essência infernal trouxe à terra.

Naquela noite, Kate matou alguém. Era a sacerdotisa, quem trouxera aquela criatura das profundezas. Não a consolava pensar que era necessário. Ela matou alguém. Apontou a arma, puxou o gatilho e viu a mulher cair no chão. Mas não foi o que mais lamentou aquela noite.

Fez o exorcismo. Deixou-a ir embora. Fez com que ela fosse embora, de volta para o inferno, talvez. Mas desejou aquela sensação, aquele prazer pecaminoso uma vez mais. Mais. Queria mais, e de novo, e mais, e cada vez mais. Aquela intensidade, as ondas reverberando pelo seu corpo jovem e rijo e tenso. Desde aquela noite, era a única coisa que desejava.

E buscou, e buscava, e busca. Continua procurando. Apenas uma casca vazia, era como se sentia. E de que adiantava viver assim? Nada era interessante. Nada dava vontade. Bebeu, transou com tantos naquelas semanas que não podia nem contar. Contar. Contar a quem? Quem a entenderia? Não podia. E ainda buscava.

O despertador tocou. Pela quarta vez. Ou quinta? Não conseguia contar. Olhou pela janela: o sol iluminava e esquentava seu quarto. Não tinha vontade de ir. Mas precisava. Encher a cabeça. A cabeça com conversas inúteis, planos inúteis, assuntos inúteis, pessoas inúteis. Nenhuma delas a preenchia. Nenhuma delas lhe servia.

Odiaria cada minuto daquele dia. Odiaria a si, àquele vazio, a si. Relutante, desligou o despertador e se levantou.